Neste artigo, a professora e jurista Sonia Rabello destaca o pretexto do prefeito do Rio ao usar a crise na Saúde para enviar à Câmara de Vereadores o PLC 174/2020 que concede anistias urbanísticas, altera gabaritos, autoriza transformações de uso e altera zoneamentos. “Os recursos arrecadados, ao contrário do que alega serem para a Saúde, iriam para Orçamento Geral da Prefeitura, permitindo pagar empréstimos, viagens, encargos especiais”, afirma.
A “boiada” urbanística do Crivella para a Cidade do Rio
Sonia Rabello
Uns falam o que pretendem fazer; passar a boiada na “distração” de todos com a Covid-19. Outros, mais escolados na velha política, simplesmente fazem, sem falar para o público em geral, mas usando o mesmo pretexto distracional da dramática crise na Saúde.
Com “cara de paisagem”, e sem qualquer rubor de vergonha na face, o prefeito Crivella do Rio usou o pretexto da crise na Saúde para enviar à Câmara de Vereadores um Projeto de Lei Complementar – o PLC 174/2020, que concede anistias urbanísticas, altera gabaritos, autoriza transformações de uso em áreas residenciais e multifamiliares, altera o zoneamento nas áreas próximas à encostas, favelas e comunidades, entre outros. Enfim, uma completa lei de exceção urbanística para a Cidade.
E qual o pretexto usado? “Arrecadar recursos” para o Município, tudo viabilizado pagando uma “graninha” para a Prefeitura que diz que usará os recursos para ações de combate à pandemia, na Saúde, na Infraestrutura, na Habitação e, inclusive, para pagar servidores…
Mas esta afirmação legal é esfarrapada porque o dinheiro a ser arrecadado, que só Zeus poderia ter noção de quanto seria, não se destina a nenhum fundo ou conta orçamentária especial. Irá, portanto, para o Orçamento Geral da Prefeitura, como um dinheiro fungível. Assim, ele pagará qualquer coisa, inclusive empréstimos, viagens, encargos especiais, entre outras despesas.
art. 1º (…) § 1º Considerando o estado de calamidade pública no Município do Rio de Janeiro determinado pelo Decreto Rio nº 47.355, de 08 de abril de 2020, os recursos advindos da aplicação desta Lei Complementar serão destinados a suprir as necessidades financeiras do Município no custeio das ações emergenciais relativas à saúde pública, provisão de infraestrutura, habitação e assistência social para a população vulnerável aos riscos da Covid-19, bem como da folha de pagamento dos servidores.
Mesmo se assim não fosse, a proposta legislativa diz mirar em uma coisa para acertar em outra.
Tentativas da Prefeitura
De fato, desde o ano passado, a Prefeitura vem tentando propor diversos projetos de lei para permitir legalizações, liberar gabaritos, mudar zoneamentos. Eles estavam sendo objetos de processos de discussões junto ao Conselho de Política Urbana (COMPUR).
Vários projetos tais como o PLC 141/2019, o anteprojeto que restauraria benefícios a hotéis que não cumpriram a legislação no prazo, o que propunha modificação de construção nas encostas e do PEU de São Conrado, estavam em discussão no COMPUR.
Contudo, neste Conselho é observado uma forte e saudável reação no sentido de se exigir que nenhum projeto urbanístico, no processo de planejamento, tramitasse sem que fossem demonstrados os estudos técnicos que os justificassem. Aliás, isto é o mínimo que se pode esperar em qualquer cidade civilizada no século XXI. Esta postura foi, inclusive, objeto de moção técnica aprovada no COMPUR, cujo texto e condições de procedimento se encontram abaixo.
É evidente, ao menos para os planejadores e administradores de cidades, que as propostas urbanísticas têm que ter fundamentos em estudos técnicos, sob pena de estar se vendendo o interesse público urbano, e o seu caos futuro, por uns trocados passageiros. E as mudanças têm potencial para acarretar custos futuros caríssimos em estruturas urbanas ambientais, sanitários, de infraestrutura e serviços públicos.
Estudos Técnicos
A apresentação dos estudos técnicos é obviamente imprescindível para qualquer proposta urbanística. Neste sentido, já se manifestaram entidades como o IAB-RJ, e o CAU-RJ. Tal ignorância, tão comum no passado na maioria das cidades brasileiras, não poderia estar sendo ainda praticada no presente e, muito menos, numa cidade que tem a pretensão de ser tão moderna, “prá frente”, aberta, capital da cultura, como o Rio.
Mas, aí veio a Covid-19. E a velhacaria política pensou, de forma unânime, na oportunidade sórdida de, colocando uma palavrinha falsa aqui e ali na lei, passar a “boiada”. Por que não, mais uma vez, usar o pretexto pandêmico e tentar mais essa artimanha? Afinal, não estariam todos tão ocupados com a epidemia?
Veio a boiada, para pular a cerca do COMPUR, da participação da sociedade, das restrições dos tais estudos técnicos.
O proposta pseudo urbanística do PLC-174/2020 encaminhado por Crivella à Câmara de Vereadores em plena quarentena é uma excrescência jurídica e urbanística, fantasiada por sórdidos “fundamentos” arrecadatórios. Várias entidades já se manifestaram contra, não só em relação a seu conteúdo urbanístico, como ao seu processo de encaminhamento: o IAB-RJ, o CAU-RJ, o IBDU (Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico), e vários técnicos e sites, como o UrbeCarioca (1, 2, 3).
A Câmara de Vereadores, ao receber esta vergonhosa proposta legislativa, em plena pandemia e em regime de exceção na Cidade, e sabendo que ela mesma está com funcionamento virtual, e consequentemente deficitário, deveria ter devolvido o projeto. Até pelo fato de que, segundo a própria resolução que a permite funcionar precariamente, inclusive sem reuniões efetivas de suas comissões, está sabendo que qualquer projeto de lei fora da excepcionalidade de auxílio direto à Saúde Pública constitui uma ameaça ao processo legislativo participativo, transparente e público que deve nortear o Estado de Direito.
Portanto, sob o meu ponto de vista, é uma fraude a tramitação legislativa e a votação de qualquer projeto de lei urbanístico como uma lei de exceção, com tramitação de exceção, durante o período de exceção de Saúde Pública da COVID-19
Vamos ver com como os vereadores da Cidade do Rio encaminharão esta boiada. Esperamos que não seja com mais disfarces e falações inverídicas e demagógicas que, como sabem, só têm favorecido os infratores da lei.
Moção do COMPUR
O COMPUR, criado pela lei 3957/2005, e nos termos dos incisos VIII, X, XII do seu Regimento Interno (Resolução 01/2005), submete e propõe ao Colegiado o seguinte moção de procedimento:
> todas as matérias submetidas ao COMPUR e que tratem de alteração na legislação urbanística, ou que tratem, na forma ou no seu conteúdo de implantação das políticas urbanas, especialmente quando as mesmas tiverem por objetivo se materializar em projetos de lei a serem encaminhados pelo Executivo, devem ser objeto de remessa aos seus membros com antecedência necessária para exame e debates prévios, e acompanhado dos devidos estudos técnicos que justificam a proposta.
> quando as propostas forem apresentadas diretamente em reunião do COMPUR, a matéria deverá então ser objeto de pauta para mais uma próxima reunião, para que a integridade da proposição, acompanhada dos estudos técnicos que a justificam, possa ser levada ao conhecimento prévio das organizações civis para as consultas necessárias, e agendamento de debate no COMPUR com as informações estudadas por todos os seus membros.
Justificativa: A lei que instituiu o COMPUR lhe deu o papel relevante de ser “órgão participativo e consultivo do Poder Público Municipal, relativo ao desenvolvimento urbano, com vistas ao Sistema Municipal de Planejamento”. Esta relevância significa dizer que ele é órgão essencial à integração da participação da sociedade na implementação da política de urbana e do seu plano diretor, nos termos do art.5º, inc.VII da lei complementar 111/2011 que diz:
“VII – da participação pública efetiva e continuada, através dos Conselhos Municipais, Conferências da Cidade, Audiências Públicas e da disponibilização ampla de informações qualificadas sobre a Cidade”.
Portanto, o COMPUR, pelos seus membros, tem a obrigação e o dever de opinar (dar parecer) sobre todos os assuntos que a lei lhe deu competência para tal* e, para tanto, não poderá fazê-lo senão baseado em “informações amplas, qualificadas e disponibilizadas sobre a Cidade” e de suas propostas de planejamento e política urbana.
Sem estas informações amplas, qualificadas e disponibilizadas é notório e elementar que sua função legal não poderá ser exercida com a legitimidade que o Plano Diretor, e o sistema legal de planejamento urbano requer.
Ainda que a manifestação do COMPUR não tenha caráter vinculatório para a decisão da chefia do Poder Executivo Municipal, a manifestação do COMPUR tem o caráter obrigatoriamente instrutório do processo decisório das políticas de planejamento urbano municipal. Neste sentido, o peso de seus debates e de difusão de informações para legitimação da construção e gestão do planejamento urbano é central no processo das políticas públicas; e este processo de formulação de políticas públicas não se fazem, nos dias atuais, senão com informações amplas, qualificadas e disponibilizadas.
A proposta de moção acima concretiza as diretrizes legais que direcionam a atuação do COMPUR, e as expectativas do Plano Diretor da Cidade do Rio de Janeiro.
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